A Influência do Rock Nacional Na Cultura Política Brasileira.
O começo da década de 80
não foi nada propício para o rock. A MPB de FM dominava o circuito musical e,
apesar da relativa abertura política, a sombra da repressão e a censura ainda
desanimavam os que tentavam ser tematicamente ousados.Em 1983, o rock começou a
conquistar espaço na imprensa, e as gravadoras começaram a contratar bandas e
lançar seus discos.Com a realização do Rock In Rio, o Brasil entrou na rota das
turnês das bandas internacionais e os roqueiros brasileiros tiveram noções de
profissionalismo com relação à produção dos shows. Era o início de uma nova
era, pois durante o festival ocorreu a eleição de Tancredo Neves, eleito como o
primeiro presidente civil no Brasil desde o golpe militar de 1964.A discrepante
distribuição de renda já perpetuada na história do país, mediante a este
contexto, aumentou consideravelmente. Apenas para exemplificar os efeitos da
crise, se pode apontar que na década de 80 as construções rudimentares em
loteamentos ilegais como as favelas só foram apontadas através de números
crescentes. Resultando dos problemas relacionados a moradia estruturada e
somando-se a eles, o grande número de indigentes e de crianças de rua nesta
década passaram a fazer parte da rotina das cidades. Este fato pode ser
observado em algumas canções do rock brasileiro da época. Na ocasião das
manifestações pelas Diretas, a música se fez presente de uma maneira muito
significativa. Canções já típicas da MPB eram ecoadas por um grande número de
pessoas.Mas, assim como os atores sociais haviam mudado, a trilha sonora que os
movia tambémapresentava mudanças. No trecho de uma das canções usadas pelos
manifestantes do período,pode-se notar isso:
A gente não sabemos
escolher presidente,
a gente não sabemos
tomar conta da gente,
A gente não sabemos nem
escovar os
dentes,
tem gringo pensando
que nóis é indigente!
Inútil, a gente somos
inútil!{...}
A canção chamada “Inútil” gravada primeiramente em 1983, em um
compacto, Inútil só pode ser ouvida pelo público em 1985, no primeiro álbum da
banda Ultraje a Rigor. Apesar de leve e engraçada, tinha um teor bastante
crítico em relação ao Brasil da época e fez coro nas ruas para ajudar a pedir
as “diretas já”. A escolha desta canção para este movimento foi feita
antecipadamente por Ulisses Guimarães que já a havia usado para ironizar
as intenções de eleições indiretas do governo.
A letra da canção, escrita propositalmente com os usos coloquiais
da língua
portuguesa, enfatizando
que a fala do sujeito emerge da população comum e ao mesmo tempo chamando a
atenção para esta questão, faz uma alusão direta a falta de participação
política inferida à população pelos militares. Além disso, chama a atenção
também para as visões que se tinha e ainda se tem no exterior sobre o
Brasil enquanto um país tradicionalmente “festeiro”, porém subdesenvolvido e
quase inadimplente com relação à uma dívida externa que ajudava a travar o seu
crescimento geral. As eleições de 1985 foram indiretas. “Disputadas” por
Tancredo Neves, candidato indicado pela oposição liderada pelo PMDB e por Paulo
Maluf, candidato da situação, a oposição se saiu vitoriosa. O seu candidato
criou perante a população uma imagem de identificação com a campanha pelas
diretas e, além disso, com amplo apoio dos meios de comunicação, passou a
representar a figura do político “salvador da pátria” (RODRIGUES, 1990:) coisa
que lhe rendeu a massiva simpatia da população pela sua candidatura.
A Frente Liberal, grupo
político emergido da cisão do PDS na ocasião das eleições, acordou com o PMDB a
criação de uma chapa chamada de “Aliança Democrática”, a qual tinha como nome
para vice de Tancredo o ex-presidente do PDS, José Sarney. Tal acordo
possibilitou a vitória do candidato da oposição, mesmo com o fato do PT
(Partido dos Trabalhadores) ter se recusado a participar de uma eleição
indireta neste ponto da transição.
A vitória de Tancredo
não parecia apontar mudanças drásticas no país. Tanto ele quanto o seu vice já
eram figuras conhecidas de nossa política e não assustavam os simpatizantes dos
militares, muito pelo contrário. Apelidada pelo político do PMDB, Ulisses
Guimarães, de “Nova República”, a fase iniciada pelo Brasil após a vitória de
Tancredo Neves, apesar
dos pesares, representou o fim quase definitivo da Ditadura Militar no país,
mas não trouxe quase nenhuma transformação de cunho econômico para a maioria da
população.
O hino da Nova
República...
Eu acredito na
manutenção da ordem pública
Eu acredito na Nova
República
Eu acredito... Há, há...
Eu acredito em toda essa
cascata
Eu acredito no beijo do
papa [...]
Se referindo a esta fase
da história do país, o grupo Camisa de Vênus regravou uma de suas canções da
qual foi retirado o trecho citado acima. Nesta versão da canção “O Adventista”,
a letra cantada “ao vivo” sofreu modificações para se referir àquele momento
política brasileira.
Com bastante ironia no
tom de voz, Marcelo Nova anunciava que este
seria o “hino da Nova
República”, em seguida, num ritmo muito mais rápido do que o da gravação
original feita em 1983,
a banda o
acompanha enquanto ele
canta a nova letra
repleta de alusões e críticas à chamada Nova República. No refrão original da
canção que diz “Não vai haver amor nesse mundo nunca mais”, o público o ajuda a
cantar proferindo um palavrão, o que pode ser visto como demonstração de
rebeldia gratuita, mas também como a concordância e a revolta com o que cantava
em tom bastante crítico e engraçado o cantor.
No final da canção,
enquanto o público continua a repetir sem parar o novo refrão, Marcelo Nova
começa a rezar o “Pai Nosso”, o que aumentava mais ainda o tom de crítica e
protesto.
O presidente eleito
indiretamente na “Nova República” não chegou a ocupar a cadeira presidencial,
pois na véspera de sua posse fora internado no Hospital de
para se livrar de uma
suposta apendicite. José Sarney, o vice, assumiu a presidência da República,
mesmo sem receber a faixa presidencial do último militar no
poder que o acusava de
ser o culpado pela quebra do partido da situação e a sua conseqüente derrota na
eleição presidencial.
Enquanto isso, após
diversas internações e operações nas quais não teve êxito, Tancredo Neves
morreu no dia 21 de abril do mesmo ano acometido por complicações no tratamento
de um tumor. Nesta ocasião, a comoção tomou conta dos brasileiros e o país
praticamente parou para assistir a cerimônia fúnebre.
O vice José Sarney já
havia assumido a presidência e com ela os inúmeros problemas do Brasil para os
quais as soluções não pareciam fáceis. Era preciso responder com urgência aos
anseios dos vários setores sociais depositados no governo de transição que
acidentalmente assumira. Dentre estes estava a expectativa de uma nova
Constituição que deveria substituir a de cunho ditatorial.
No entanto, a crescente
inflação a essa altura já estava prevista para além dos 300% ao ano (PIRAGALLO,
2006), as taxas de crescimento do país eram ínfimas e o arrocho salarial e o
desemprego colocavam os trabalhadores em
alerta. Em 1986
a projeção
da inflação anual ultrapassou a casa dos 500%. Esta situação não poderia
continuar como estava ou o governo de transição entraria em colapso.
Neste contexto, em 28 de
fevereiro de 1986, Sarney anunciou para a nação o “Plano Cruzado", o que
agradou a população e garantiu popularidade ao novo presidente. A inflação caiu
significativamente, o que era visto e sentido pelas pessoas.
Pelo plano, além do
tabelamento e congelamento dos preços ao consumidor por um ano, o salário do
trabalhador deveria aumentar sempre que a inflação medida atingisse os 20%,
estratégia esta apelidada de “gatilho salarial”.
Mais uma vez, uma canção
da banda Camisa de Vênus pode ajudar a ilustrar a situação aqui descrita e ao
mesmo tempo ser apontada como representação da insatisfação e do protesto
contra a situação:
Aqui não tem problema,
só se você quiser
Esse é o país do futuro,
tenha esperança e fé
Todo dia lhe oferecem
sempre o melhor negócio
Vão levar a sua grana,
vão lhe chamar de sócio
Vai ficar tudo bem,
acredite em mim meu filho
A gente aumenta o seu
salário, dispara o gatilho
Aí, pra que você não
reclame e também para que não esqueça
Dispararam o tal do
gatilho em cima da sua cabeça
Nós vamos outra vez pro
fundo do buraco
Você não tem vergonha e
eu já não tenho saco [...]
Os projetos de
modernidade apresentados pelos governantes do país no decorrer das décadas
antecedentes aos anos 80 apresentaram-se muitas vezes como entraves econômicos
mediante aos valores monetários que exigiram quando se conseguia concluí-los
efetivamente, caso da construção de Brasília, ou quando se limitaram a
aspiradores de recursos financeiros sem conclusão satisfatória como a rodovia
Transamazônica.Corroborando com esta discussão, a canção acima denota certo humor
acompanhado de um sarcasmo considerável ao ser intitulada de “O país do
futuro”. Aludindo assim a um Brasil que se pretendia moderno nos discursos
políticos, mas que se apresentava com as graves seqüelas dos desmandos
políticos, se afastando bastante das verborragias governamentais para as quais
boa parcela da juventude que viveu aquela década já “não tinha saco”.
Confiado em seu
prestígio mediante a aceitação popular ao plano, através da mídia, Sarney
convocou o povo a ser fiscal dele nos supermercados para garantir a estratégia
do congelamento. A aceitação do encargo foi imediata e as transgressões dos
donos de supermercados também, mas não faltou quem as denunciasse. A euforia do
Cruzado levou a população a consumir elevadamente confiada no congelamento de
preços que derrubara as elevadas taxas inflacionárias e ao mesmo tempo
desconfiada da durabilidade do plano.
A opção encontrada para
sanar esta insegurança foi comprar grandes quantidades de tudo o que se podia
estocar enquanto os preços estivessem congelados. Alimentos como a carne e o
leite desapareceram do mercado e para consegui-los, quem podia, pagou um ágio
“instituído” pelos modos de se lidar com a situação. A mesma coisa aconteceu
com a gasolina, o gás de cozinha, etc. Assim, por estas e por outras.causas, o
plano já anunciava a sua decadência sem haver chegado a transformar de fato a
situação econômica do país.
Enquanto o Cruzado fez
sucesso o governo também fez e, desta forma, segurou as rédeas do congelamento
até as eleições do final do ano quando o PMDB, alimentado pelo prestígio de
Sarney junto ao povo, ganhou o governo de todos os estados excetuando Sergipe,
além da maioria na Câmara e no Senado (PIRAGALLO, 2006). Os parlamentares que
decidiriam as linhas da nova Constituição já estavam definidos nas urnas.
Após as eleições o
Cruzado que já apresentava inúmeros problemas para se manter, chegava ao fim e
era substituído pelo “Cruzado II”, no qual a âncora nos preços não podia mais
se manter. Acabada a política de congelamento a população sentia-se traída e
usada pelo governo para ganhar as eleições, o que havia ficado claro. A
popularidade de Sarney caiu vertiginosamente. Economicamente, voltava-se para o
lugar de onde se havia partido.
A dívida externa
continuava em livre ascensão, a inflação voltou e o salário mínimo se
desvalorizava constantemente. A banda Titãs assim apontava isso:
Meu salário desvalorizou
Dívidas, juros,
dividendos
Senhores, senhores,
senhores agora é assim
Credores, credores,
credores tenham pena de mim!
O Cruzado II
representava a volta de tudo o que a nação havia rechaçado nas urnas,
principalmente a da inflação. Em fevereiro de 1987, Sarney anunciou à nação a
moratória que na verdade foi motivada não por uma reação aos altos juros da
dívida externa como ele queria fazer crer, mas sim pela falta de dinheiro nos
cofres públicos para pagá-los, já que a manutenção do congelamento dos preços
durante o Cruzado havia custado caro ao governo. A situação do país parecia
pior agora do que no começo de seu mandato.
O governo não conseguia
se erguer dos escombros da crise. Do Cruzado II ao Plano Verão no final de seu
mandato em 1989, todos os planos lançados pela sua equipe econômica se
caracterizaram apenas como tentativas frustradas de driblar temporariamente a
crise e reconquistar a popularidade perdida.
Neste clima de
frustração política e econômica, logo após a derrocada do Cruzado, a
Assembléia Constituinte
que deveria definir as linhas da próxima Constituição já havia sido formada
para em cinco de outubro de 1988 promulgá-la no país. Apelidada de
“constituição cidadã”, esta carta magna trazia avanços significativos para as
leis brasileiras, conseguindo representar a luta de muitos setores sociais em
seu texto.
O reconhecimento do
direito de greve, o voto facultativo a partir dos 16 anos, a garantia das
eleições diretas para cargos políticos e o repúdio ao racismo inseridos na nova
Constituição são exemplos das expectativas traduzidas nas lutas de muitos
sujeitos sociais e finalmente conquistadas.
No mesmo clima,
inicia-se também a corrida política para a primeira eleição direta para
presidente pós-ditadura. As eleições presidenciais ocorreriam em 1989 e os
candidatos eram vários entre os quais, Ulisses Guimarães pelo PMDB. Esperava-se
que ele fosse o eleito “natural” do Brasil democrático pelo seu histórico na
campanha pelas diretas e na escrita da “Constituição Cidadã”, como ele próprio
apelidara. Porém, isso não ocorreu.
A sua ligação com o
governo Sarney a essa altura foi péssima para a sua candidatura perante a
maculada reputação política que este apresentava junto à população. Luís
Ignácio Lula da Silva, candidato pelo PT, contou com amplo apoio popular nesta
campanha, mas não foi páreo para o seu opositor no segundo turno. Fernando
Collor de Melo, candidato pelo PRN (Partido da Reconstrução Nacional), partido
oportunista fundado pouco antes do pleito, obteve o pleno apoio dos partidos
declaradamente de “direita”. Além disso, recebeu apoio incondicional de uma das
emissoras de televisão mais famosas do país - a Rede Globo. Cabe aqui a letra
de um trecho de uma canção da época a respeito de candidatos “pré-fabricados”
para aparentemente atender aos anseios populares, como no caso de Fernando
Collor:
O Eleito - Lobão
O palácio é o refúgio
mais que perfeito
Para os seus desejos
mais que secretos
Lá ele se imagina o
eleito
Sem nenhuma eleição por
perto
[...] Ele é o esperto,
ele é o perfeito
Ele é o que dá certo,
ele se acha o eleito
Seus ternos são bem
cortados
Seus versos são mal
escritos
Seus gestos são mal
estudados
A sua pose é militarista
Ele se acha o intocável
Senhor de todas as
cadeiras
Derruba tudo pra ficar
estável
Ele não está aí para
brincadeira
E o tempo passa quase
parado
E eu aqui sem a menor
paciência
Contando as horas como
se fossem trocados
Como se fossem contas de
uma penitência
E tudo parece estar
errado
Mas nesse caso o erro
deu certo
Foi o que ele disse a o
pé do rádio
Com a honestidade pelo
avesso
Definida com o fato de
que Fernando Collor de Mello a venceu legítima e democraticamente. Assim, a
eleição de 1989 deu fim ao processo de transição política iniciado em 1985.
A maioria da população
havia confiado o seu direito de votar à escolha do candidato do PRN, o que
depois traria arrependimento a muitos.
Somando a todas as
conturbações políticas da década de 80 ajudou a espalhar entre os sujeitos
sociais do período um questionamento da capacidade transformadora das ações
políticas voltadas diretamente contra as grandes estruturas.